Resenha do livro: Primeiro eu tive que morrer, de Lorena Portela

Resenha do livro: Primeiro eu tive que morrer, de Lorena Portela

“Primeiro eu tive que morrer” é o livro de estreia da autora (escritora e jornalista) cearense Lorena Portela, autopublicado em 2020, e traz uma narrativa visceral sobre a reconstrução de uma mulher que decide se libertar de uma vida consumida pelo trabalho e pelo esgotamento emocional.

“Em alguns momentos, me animei, achando que poderia ganhar essa briga. Depois de um tempo, anos, eu não estava mais preocupada em ganhar briga nenhuma, eu só não queria desistir. Como se fazer isso demonstrasse fraqueza, como se desistir de toda aquela merda fosse me diminuir ainda mais, como se fosse possível ficar menor do que aquilo em que eu tinha me transformado. Eu ainda não sabia que desistir, em muitos casos, é ganhar.” 

Quantas de nós já não teve sua vida roubada pela profissão? Quantas de nós já não respondeu que era isso ou aquilo apenas em relação ao que se fazia enquanto trabalho e não ao que se é enquanto pessoa, essência viva? 

Quantas de nós já não se sentiram roubadas pela soberania masculina que sempre leva as honras? Quantas de nós já não se sentiram distantes de si mesmas e roubadas pelo cotidiano que dilacera qualquer curiosidade, criatividade, instinto? Quantas de nós já não acreditou que para ser digna de respeito, amor e atenção precisava ter uma carreira consolidada, um lugar no mercado de trabalho, ainda que ele te roubasse todo o restante? 

Se você se identificou com alguma dessas questões, atrevo-me a dizer que o primeiro livro da Lorena Portela com certeza vai te acertar em cheio. Ela narra a história de uma publicitária de 30 anos, prestes a ter um burnout com uma vida inteiramente dedicada às necessidades da agência na qual trabalhava incessantemente. Sua relação com o trabalho, com o ambiente tóxico das agências de publicidade e a “soberania” e soberba masculina, a falta de cuidado próprio e a ideia de que descansar é quase um pecado são preliminares que, com certeza, nos envolve pela veracidade que não precisa de comprovação ou tão pouco se concentra em um mero romance – ela é, cada vez mais, atual. 

“Ter ouvido tantas vezes que eu era boa e competente fazendo propaganda me convenceu de que aquilo era o que eu deveria fazer para o resto da vida. Infeliz e persistentemente, até o dia de parar, já mais velha, com uma casa própria quitada, carro bom e uma viagem internacional por ano”. 

Acredito que nós (olha eu nessa de novo) da geração dos millennials temos essa relação conturbada com o trabalho em comum e esse cenário que a Lorena constrói com sua personagem logo de início é ao mesmo tempo, avassalador e acolhedor. É como se ver no espelho e reconhecer, ainda que amargamente, nossa dor. Particularmente, a relação entre conquista x ser alguém na vida x trabalhar muito é algo que me pegou nesse livro (ao longo dessa resenha, deixei alguns trechos para sinalizar). 

Enquanto lia, me vi confrontada por questões que eu mesma já vivi ou observei: a romantização do trabalho excessivo, a dificuldade de desconstruir a ideia de que produtividade define o valor de alguém e o peso de desaprender crenças limitantes.

Lorena escreve com uma sensibilidade crua, como quem segura um espelho para o leitor, forçando-o a enxergar as feridas sem anestesia, mas com uma delicadeza que abraça. Sua narrativa é ao mesmo tempo íntima e universal, como se estivesse contando nossa própria história.

“Ser boa numa coisa e passar a ganhar um salário considerado justo por isso roubou a minha noção de felicidade. Passei a me acomodar com aquilo porque era o que eu sabia fazer e recomeçar significava o tédio de ter que aprender coisas novas, a chateação de ganhar salários menores, a agonia de me submeter a humilhações diferentes. Todas essas questões atingiam a minha cabeça como uma sequência de pedras jogadas contra mim.”

Do ponto de vista mais “técnico” – se é que tenho o direito de entrar nisso – posso dizer que a leitura é leve, envolvente e muito gostosa. Algumas construções com mais detalhes na narrativa da personagem e seu dia a dia em Jericoacoara é realmente cativante (para quem nunca foi, como eu, dá mais vontade ainda de conhecer; e, talvez, para quem já tenha ido, deixe o coração mais quentinho).

Jericoacoara, com suas paisagens tranquilas e personagens cativantes, é quase uma personagem por si só na narrativa. O cenário é mais do que um refúgio físico para a protagonista – ele reflete o processo de desacelerar, reencontrar o prazer nas coisas simples e se reconectar com a essência perdida.

“Mas não trabalhar me fazia indigna de desfrutar aquele lugar, pensei. Me fazia uma pessoa à toa, e senti que precisava me justificar por cuidar de mim mesma, que precisava explicar por que eu tinha resolvido me tratar com algum respeito. Como se o descanso fosse um luxo muito fora do meu alcance.”

A construção narrativa em volta das outras personagens também é muito perspicaz e faz todo sentido para um tom crítico e, ao mesmo tempo, acolhedor da história – a pousada do casal de amigas, o relacionamento da personagem principal com Gloria, etc.  

O livro consegue equilibrar com maestria os momentos de angústia da protagonista com as pequenas conquistas e instantes de paz em Jericoacoara. Esse ritmo torna a leitura fluida, mas ao mesmo tempo intensa.

Aqui, nem é exatamente uma crítica, mas pela leitura ser tão fluida e gostosa, senti falta de alguns aprofundamentos – o próprio relacionamento com Gloria e a tal da Amalia (gente, isso realmente me pegou, mas sem spoilers). 

“Estar feliz daquele jeito me fazia acreditar que algo muito ruim aconteceria em breve, para garantir que aquele sentimento terno e pleno não era para mim. A felicidade era tipo um artigo de luxo, feita para pessoas melhores do que eu, menos erradas do que eu, mais bonitas do que eu. Estava convicta de que nada do que eu era ou havia feito me tornava merecedora (…). A felicidade me enchia de medo e de culpa.”

Posso dizer, ainda, que uma das coisas que mais encheu meu coração na parte da vivência em Jeri narrada foi a relação com Guida, uma senhora que conhecia tudo sobre ervas (e sobre a vida, talvez?), e Luana, sua neta. Isso aqui é de um sentimento tão profundo, tão cheio de alma, que é difícil não querer levar pra vida. 

 “De como eu tive que brigar tanto e sempre por tudo que eu queria. E eu nem queria coisas demais. Até que parei de querer. Até que me convenceram de tanta coisa. Lembrei de como comecei, eu mesma, a me boicotar inconscientemente. Anular qualquer chance de ser feliz por não me achar merecedora. Lembrei de como qualquer sentimento de felicidade era o prenúncio de uma desgraça.”

Enfim, Primeiro eu tive que morrer é um livro que eu super recomendo especialmente se você se viu em um desses cenários que eu comentei aqui (se for mulher, então, quase obrigatório). Mais do que um livro, Primeiro eu tive que morrer é um convite para revisitarmos nossas próprias escolhas e redefinirmos o que significa ser feliz e estar em paz. É impossível sair dessa leitura a mesma pessoa que entrou.

“Eu quero ser livre para viver. Eu quero ter paz com o que me trouxe até aqui. Eu quero me libertar dos fantasmas que me fizeram companhia até hoje.  Quero seguir a minha própria estrada, em frente, apesar do mal que me fizeram e do mal que eu causei. Eu encaro aqui os meus traumas, encaro aqui as minhas dores, deixo aqui as minhas culpas para viver a minha história. Eu quero tomar parte da minha felicidade. Eu sou inteira para o que eu posso ser. Eu mereço as alegrias que a vida me trouxer e que eu construir. E eu estou no meu caminho para tudo isso.” 

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