Demorou, mas saiu: resenha do livro Torto Arado, de Itamar Viera Junior 💛
Eu preciso dizer que, de uma certa forma, esse livro ganhou meu coração. Ele conseguiu regar aquelas raízes mais profundas que eu (e acredito que muitas outras pessoas também) tenho. Torto Arado não é apenas um romance: é um retrato da história, da fé, do misticismo e da luta de um povo. Para mim, ele é o resultado, em livro, da verdadeira alma brasileira.
Logo de início, ao ler os primeiros acontecimentos entre as irmãs Bibiana e Belonísia, a descrição de seus pais (Zeca Chapéu e Salustiana), da avó Donana e do lugar onde viviam, senti meu peito arder. A escrita de Itamar Vieira Junior tem essa força – ela evoca sensações, traz cheiros, sons e memórias que parecem nossas, mesmo que nunca tenhamos vivido aquilo.
Era como se eu estivesse ouvindo uma história antiga da minha própria avó, dessas que passam de geração em geração, entre conversas à mesa ou noites na frente de casa, sob o famoso céu estrelado (aquelas épocas que a gente não tinha realmente o celular na mão).
Foi nesse momento que percebi que o livro não era apenas uma ficção, uma história isolada – ele falava das minhas raízes, das suas raízes, das nossas raízes.
A narrativa, ao longo do livro, não segue uma linha do tempo linear. Os acontecimentos são entrelaçados por lembranças, causos e silêncios que constroem a complexidade dos personagens e da própria história. Essa estrutura, longe de ser confusa, dá ainda mais profundidade à obra, permitindo que cada personagem tenha sua voz e seu tempo. É um livro que nos faz passar por todas as emoções: há momentos de alegria e ternura, mas também de medo, dor e indignação.
É claro que eu não posso deixar de mencionar a força do contexto histórico e social que envolve toda a narrativa. O cenário, a fazenda fictícia chamada Água Negra, é um como um pequeno mundo que traz à tona a realidade do sertão brasileiro e de tantas outras regiões onde a terra e o trabalho são marcados por desigualdade e violência. O livro denuncia, sem meias palavras, o avanço do latifúndio, a exploração dos trabalhadores rurais, a ignorância imposta a eles, e a brutalidade da vida que os cerca. Mas há também outro lado – um lado de resistência, de fé, de tradição. A cultura desse povo, suas crenças e lendas, sua relação mística com a terra e com a espiritualidade, tudo se envolve na narrativa, tornando-a ainda mais rica e única.
Além disso, Torto Arado escancara assuntos tão recentes e importantes ainda hoje como desigualdades raciais, de gênero e do próprio trabalho rural. Fala sobre a juventude das mulheres interrompida pela maternidade precoce e pelos casamentos impostos, sobre a falta de direitos, sobre a dureza de um cotidiano onde a seca não leva apenas plantações, mas também a dignidade e a esperança.
A invisibilidade dos que vivem da terra e nela fincam seus pés e suas histórias é um tema constante, e a maneira como Itamar Vieira Junior o aborda é crua e necessária.
Mais do que um romance, Torto Arado é um convite à reflexão. É uma leitura impossível de ignorar, que nos faz olhar para nossa própria história com mais atenção e mais respeito. É sobre conhecer nossa terra, nossa essência. É sobre ouvir as vozes que, por tanto tempo, foram silenciadas.
“Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e por terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, da sua cor. Que não gostassem de seus filhos, das suas cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos a sós. Quando não éramos parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo.”
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